É um ritual meu, sempre que o sono não me carrega nos seus braços por mais algumas horas. O mesmo é dizer que, aos domingos, se não estiver a trabalhar (sim, leram bem, não é um erro tipográfico) e se não me deixar adormecer, gosto de ir àquele café, beber do mesmo enquanto leio o jornal. Deve ser o único dia da semana em que o compro e acaba por ser uma mera desculpa para ficar ali, um par de horas perdido do resto do mundo. Pelo simples facto de estar ali, umas vezes absorvido pela leitura, mas na maior parte das vezes absorvido pelas pessoas que passam por ali. Não que sejam seres fora do normal, mas apenas pessoas às quais não prestaria muita atenção a não ser ali, parado e com aquilo que também parece um mundo parado à minha volta. Pessoas de todas as idades, géneros, sozinhas e acompanhadas. Vão passando por ali, tomam o pequeno-almoço, conversam, algumas também têm jornais consigo, outras demoram-se apenas o tempo de pedir, consumir e pagar a primeira bica do dia. Umas entram, outras saem. Por cima de todos nós, as ondas de éter de uma qualquer estação de rádio também ela perdida no tempo, ou melhor, no passado. E é neste quadro que normalmente o meu olhar vai sempre parar àquela figura, quase sempre sentada no mesmo sítio, quase sempre sozinha. Um senhor, provavelmente com idade para ser meu avô, sentado, com o boné do costume, a olhar para o lado de fora da enorme janela que ocupa parte das paredes. Sem jornal, sem café na mesa, apenas a olhar de forma tranquila lá para fora. Recordo-me da primeira vez que este senhor agarrou o meu próprio olhar. Fiquei intrigado. A paz do seu rosto contrastava com a aparente solidão da sua mesa. Fiquei perturbado, pois quase pensei que, não fosse o sorriso que ele ostentava, e quase que podia ser o protagonista de uma história por mim escrita há já algum tempo, num quarto de hotel. Mas essa história era demasiado deprimente e reflectia o encerrar de uma vida, e aquele homem ali, a duas mesas de distância da minha, e mesmo com os seus cabelos brancos, ainda parecia estar longe do seu próprio encerrar de capítulo. E foi nesse preciso momento, enquanto o meu cérebro começava a pedir-me timidamente para escrever a história daquele senhor, que o sorriso dele se tornou ainda mais radioso e então eu compreendi a sua espera. Pela porta do café entravam dois homens, duas mulheres e três crianças numa correria desenfreada que apenas parou junto da mesa do homem, que as abraçou e beijou, enquanto todos se iam sentando à sua volta. E assim se rompeu o aparente manto de isolamento do senhor, e a sua mesa rapidamente se tornou numa reconfortante confusão de conversas cruzadas, risos, olhares confidentes e sobretudo um carinho transbordante de todas aquelas pessoas pelo senhor que tinha idade para ser avô e pai de todos eles. Se calhar conto esta história porque, de certa forma, também acabou por ficar a fazer parte de mim. Seja porque lá do meu canto, tenha reparado neste pequenino momento de felicidade espontânea, seja porque acabei por assistir a várias reposições desta história. Uma após outra semana, toda a mesma sequência de eventos voltava a repetir-se, sempre com o desfecho esperado e por mim secretamente celebrado. É uma história que, mesmo com estas palavras que agora estou a escrever, não consigo traduzir propriamente da realidade que me é dada a assistir quase todas as semanas. Até no domingo passado, quando já chovia a rodos. Na verdade, parecia que a história teria outro final, pois o senhor esperou muito mais tempo pelos seus companheiros de mesa. Mas mesmo quando já me estava a preparar para sair, eis que o primeiro dos netos entra no café e se dirige ao senhor, abraçando-o com uma força de amor que me lembrou o meu próprio avô. E aos poucos eles foram chegando, sacudindo as gotas de chuva dos chapéus, e sentando-se à volta daquele homem cuja face irradiava felicidade por todos os poros.
Vai haver quem ache esta história ligeiramente lamechas, e outros até vão pensar que foi desta que a minha cabeça deu o berro, e que já estou pronto para a camisa de forças. Poderá mesmo haver quem pense que isto não passa de mais uma das minhas ficções. Mas a verdade é que todas estas palavras apenas serviram como uma forma de deixar a vida deste senhor, que não conheço pessoalmente, como uma memória bonita neste espaço cinzento.
Mas para os descrentes apenas posso deixar uma sugestão. Querem vir ao café no próximo domingo? Eu pago e vocês observam...
5 comentários:
Oh Nuno! Tão lindo! Não está lamechas, está tão lindo que só pode ser verdade!
lenor
É bonito de ver sim. E os velhotes solitários o que andam a perder...
abraço
Obrigado, meus amigos. As vossas palavras também uma boa sensação deste lado...
Lindo, Nuno, lindíssimo. Bravo por ainda continuares desse lado, com algumas inutilidades e textos destes assim, tão úteis, tão desprovidos de soberba, a abraçar toda a simplicidade do Mundo.
Sentida vénia e sim, continua assim. Sempre.
Sentida e emocionada vénia de volta, minha querida. Quem me dera estar nesse ambiente onde agora vives para que a inspiração suplantasse definitivamente as "inutilidades"...
Beijos grandes, simples, sentidos.
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