quinta-feira, julho 12, 2007

A queda

Olhou para trás. Viu o mundo como nunca tinha visto, todo de uma só vez. Como nos filmes. Enquanto sentia o seu corpo a cair no abismo, via ao mesmo tempo o momento em que tinha pela primeira vez aberto os seus olhos e visto os olhos cheios de ternura daquele ser que lhe tinha dado a vida. O primeiro dia de escola, rodeada de crianças que nunca tinha visto, todas num mesmo espaço que prometia brincadeiras e ensino. O primeiro beijo, às escondidas, com os lábios encostados por um microsegundo nos lábios de um rapaz que nunca mais encontraria na sua vida. Sentiu um arrepio, o vento tornava-se cada vez mais intenso. Piscou os olhos e ali, à sua frente, via o grupo de amigos, sempre eterno, atravessando a pé a ponte de Brooklyn, esquivando-se aos loucos ciclistas que pedalavam não se sabia bem para onde. Os abraços, os sorrisos, os beijos, as lágrimas, as saudades, conseguia ver todas aquelas emoções nas caras deles. E lá atrás, surgindo do meio deles, estava ele. O seu verdadeiro amor. O seu único amor. Aquele por quem podia perder tudo e, ao mesmo tempo, ter apenas aquilo que importava ao seu coração. E recordou todas aquelas noites quentes nos braços dele. A ternura com que ele percorria toda a imensidão do seu corpo com os seus lábios quentes. E enquanto se começava a aproximar do seu destino, viu-se a ela mesma, a sair da igreja, com o seu marido, que não era o seu verdadeiro amor. Gostava dele, gostou muito dele, mas não era ele que ela queria. Sentiu um aperto no peito. Sabia que ela não tinha sido justa com ele, como mais tarde ele não seria justa com ela. Era tarde, muito tarde, já não havia nada a fazer. Apenas ver, com os olhos crivados de lágrimas, a face do seu filho segundos depois de ela o trazer ao mundo. A sua dádiva. O seu sangue. A sua alma espelhada naqueles pequeninos olhos claros que a olhavam com a mesma curiosidade que ela tinha quando nasceu. Aqueles pequeninos olhos que a tinham deixado, sózinha, abandonada num mundo que não tinha qualquer sentido. Nenhuma réstia de lógica ou entendimento. O vento secou rapidamente as suas lágrimas. Demasiado rapidamente. Ela apercebia-se que queria chorar, apenas chorar, se fosse preciso para todo o sempre. E de repente silêncio. O vazio. O vácuo. Apenas uma luz ofuscante. Imensa. Impossível. E depois a escuridão. O filme tinha chegado ao fim. Não haveria sequelas. O ecrãn estava negro e assim estava ela. No escuro. Ponto final.

3 comentários:

Rui Rebelo disse...

Há que tempos não vinha aqui...

Anónimo disse...

Gostei. :)

Anónimo disse...

Depois de muitas voltas e voltas o meu escrito para ti prometido saiu.
Não sei se estou satisfeita, ultimamente não tenho ficado...
Mas foi esforçado, sincero e sentido.
:)