Levantou-se e procurou no guarda-fatos o seu roupão, enquanto os seus dentes batiam uns nos outros ao ritmo de uma rumba. Uma vez enfaixado no seu roupão, começou a percorrer a casa, deixando um rasto no tapete branco que acolchoava a mesma. No quarto, o mogno dos móveis tinha ficado desaparecido naquela avalancha de neve que insistia em cair do tecto. No hall, ainda se conseguia ver um breve vestígio dos sapatos de Francisco, no sítio onde tinham ficado inertes depois de mais uma ronda do seu dono pelos bares da cidade. Parecia que alguém ali tinha caído e a neve o tinha soterrado. Neve que continuava a cair, em suaves flocos que se agarravam a todas as superfícies da casa. Curioso, Francisco abriu a porta da casa-de-banho e quase, quase sentiu vontade de mergulhar na banheira que transbordava de neve. Mas podia-se dizer que aquilo o tinha despertado realmente para a realidade da situação que ali se passava.
Afinal, estava a nevar dentro da sua própria casa. Isto não era normal. A neve só é suposto cair lá fora. Nem sequer tinha buracos no tecto por onde todo aquele manto branco pudesse entrar. Seria aquilo um castigo divino? Sim, ele sabia que não era propriamente um santo de sacristia, mas teria o pecúlio dos seus pecadilhos atingido um tal montante que merecesse uma praga de neve? Foi até à janela da sala, tropeçando nos montículos brancos que outrora tinham sido sofás e poltronas. E aí o seu espanto foi ainda maior. Lá fora o sol brilhava e havia céus azuis. Em pleno Dezembro. Mas na sua casa, parecia que tinha sido teletransportado para as penhas douradas. Com as mãos na cabeça, sentado no chão, não sabia o que pensar, o que dizer ou o que quer que fosse necessário fazer.
A impossibilidade física de tudo aquilo tinha bloqueado o seu cérebro. Limitava-se a olhar o cair constante dos milhentos flocos que surgiam do nada. E, no meio da sua mente atormentada, algo lhe lembrou que aquele cenário tinha uma estranha beleza. Afinal de contas, tinha sempre vivido naquela cidade e poucas vezes tinha posto os olhos em tamanha quantidade de neve. Sim, haviam as viagens em tempo de férias, mas normalmente acabava sempre por as passar numa outra qualquer cidade. Onde também não nevava. E assim ficou, a ver a neve cair, desamparado, sem solução à vista.
Nesse momento, a campainha tocou. Algum vizinho a queixar-se da humidade, provavelmente. E como ia ele explicar aquele fenómeno? Noutros tempos seria acusado de feitiçaria. Agora, o mais certo era começarem a chamar-lhe profeta, demente, ou um pouco dos dois. Por outro lado, era um alívio saber que no momento em que abrisse a porta iria ter uma reacção que lhe permitiria saber se ainda se encontrava com toda a sua sanidade intacta, ou se em breve o seu guarda-roupa iria apenas consistir de camisas-de-forças, num quarto almofadado algures ali para os lados do Telhal.
Foi ver quem era. Ficou surpreso. Era Isabel, a pessoa do outro lado da porta. Havia alguns dias que já não se viam, e a última vez tinha tido um sabor amargo. Tinham ficado a um passo da separação permanente. Aliás, tinha sido essa a causa para o intensificar do seu deambular por bares e alcóol, numa tentativa de esquecer o impossível de conceber sequer a sua vida sem Isabel. Ainda tinha a vaga esperança de que a neve fosse um produto da sua alma alcoolicamente infectada. A campainha voltou a soar. Despertado dos seus pensamentos, abriu a porta e, ao ver que os olhos de Isabel tinham passado da sua triste figura e acompanhavam agora a incessante queda da neve, ficou com a clara certeza de que tudo tinha acabado de ficar mais complicado.
Isabel não conseguia dizer palavra que fosse. Foi entrando pela casa adentro, cruzando o seu rasto com aqueles que Francisco já tinha deixado. Via a palma da sua mão ficar coberta de neve. Via os seus longos cabelos negros salpicados de pequenos e brilhantes flocos. Olhava para Francisco, com as mãos nos bolsos do roupão, já quase completamente coberto por uma fina camada de neve. Isabel abriu a boca e uma torrente de palavras saiu, com pressa de ser ouvida. O que se passava ali, nunca se viu tal coisa, não é possível neve aparecer do nada, e para mais dentro da tua casa, o que é que tu fizeste, lá fora está sol e quente, mal se consegue estar aqui com o frio, mas que digo eu, está a nevar dentro da tua casa, e tu não dizes nada, vais ficar aí parado, simplesmente a olhar para mim, Francisco, diz alguma coisa, o que é que se está a passar aqui.
Quando Isabel se calou, quando calou a sua angústia por não perceber o que se passava ali, nesse momento Francisco despertou, mais uma vez, uma última e verdadeira vez. E segurando Isabel nos seus braços, apenas murmurou uma palavra aos ouvidos dela: perdoa-me. E repetiu-a, uma e outra vez, olhando Isabel nos seus olhos pretos. Perdoa-me, por tudo o que disse e o que fiz. Perdoa-me por toda a dor que te causei e que nunca mereceste. Perdoa-me por ter sido um idiota, um estúpido que nunca se esforçou por te compreender e por compreender o nosso amor. Perdoa-me, Isabel, perdoa-me antes que eu te perca e que a minha vida se torne ainda mais pequenina. Perdoa-me.
Isabel sentiu os olhos encherem-se-lhe de lágrimas, quando Francisco se calou. Não estava preparada para ouvir tudo aquilo. A culpada tinha sido a neve. A neve não estava no programa e tinha feito com que todo o discurso que trazia preparado se desvanecesse no vazio. Mas olhando Francisco, rodeado de branco, com aqueles olhos azuis que também vertiam agora lágrimas, sentiu que sim, que o perdoava, que o amor dela por ele continuava no coração dela, e que sim, que ele estava e estaria sempre, a partir daquele momento, a ser sincero. Acabavam as mentiras, as discussões e as dúvidas constantes. Acabava o punhal da dor no seu coração de cada vez que ele a amava. E momento contínuo, abraçaram-se, choraram e beijaram-se, beijaram-se como se o seu amor tivesse nascido naquele momento. Beijaram-se enquanto a neve continuava a cair sobre os seus corpos. E enquanto saíram porta fora, continuaram abraçados, com os olhos mergulhados um no outro. E enquanto saíram porta fora, a neve continuava a cair, indiferente ao amor que enchia os corações de Isabel e Francisco. E continuou a cair enquanto a porta se fechou, continuando os flocos de neve a tombarem, como cristais, na escuridão do apartamento...
(Escrito nos dias 30 de Novembro e 3 de Dezembro de 2008)
9 comentários:
Encontros, desencontros, encantos e desencantos... e algo de estranho e belo surge para limpar dores...
Belo texto!!!
Desejo um Bom Natal!
Gostei muito da tua prenda. Um excelente Natal para ti e continua com estes belos contos. Achei o conto giríssimo e sabe manter o leitor bastante atento. Bjs e Abraços Luísa e Bruno
lindo. mas a neve congela quando temos o coção numa mão e um mapa em chinês na outra...
Como algo tão frio consegue trazer o calor da alegria e do amor... é a magia da neve, a que ninguém fica indiferente...
Obrigado pelo "caloroso" postal de Natal amigo!
Obrigada também !!
está simpático. muito cinematográfico. Muito visual... muito tranquilo e silencioso...até se vê a cena em câmara lenta e com um grão mais desfocado em algumas partes...
Um conto tranquilizante...
Obrigada!
(parecido com a algumas cenas de quietude que aparecem no filme FOME)
Muito bom!!! Feliz natal e Feliz Ano Novo!!!
Boas Festas e Bom Ano de 2009!
Ena...ena...
Não o fazia tão exímio escritor!
Muito obrigada por partilhar! ;)
Desejo um FELIZ NATAL
e muitas mais histórias no sapatinho!!!! :b
Sabe mesmo bem sonhar acordado!!!!
Bjokinhas!!!!
Vejo que mesmo num dos meses mais agitados do ano, a inspiração não pára de chegar.
Obrigado por mais este belo presente.
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