quarta-feira, outubro 08, 2008

Estrada

Os olhos começavam a fechar-se-lhe. Era hábito na viagem de volta a casa. O cansaço do dia que findava em conjunto com a cadência quase sonâmbula da carruagem não deixavam grande espaço de manobra para outra coisa que não fosse o lento descer das pálpebras. O livro estava a milímetros de lhe fugir das mãos. A música que lhe saía dos auscultadores também o ajudava a embalar, muito antes da hora, para um sono que não pedia licença para se anunciar. Ele sentia as pessoas à sua volta, mas ao mesmo tempo parecia que estava sozinho no comboio, alheado do resto do mundo, ou mesmo excluído por ele. Seria por isso que quase conseguia ouvir apenas a sua música e nada mais à sua volta? Tirou os auscultadores e apenas ouvia o troar mecânico característico do comboio. Nada mais. Nem conversas entre amigos, nem juras de amor entre enamorados, nem os risos e gritos de crianças. Toda a carruagem emersa num silêncio empedrenido e insuportavelmente barulhento. Voltou a colocar os seus tampões musicais. Ao menos a música continuava a fazer-lhe companhia. Do lado de fora do vidro via o sol a esconder-se, enquanto a sua cor vermelha ia colorindo os vidros sujos do comboio. Lentamente, o disco vermelho ia escondendo-se por trás dos prédios que se faziam sempre acompanhar ao longo da linha férrea. Por um infímo momento, lembrou-se doutros comboios, doutras paisagens, doutros tempos mais inocentes e mais alegres. O sono tinha fugido de si, mas não se sentia mais desperto por causa disso. Chegou ao seu destino. As portas abriram-se e as pessoas saíram para o frio de fim de tarde que se abatia sobre a estação. Aquela luz ensanguentada do sol tornava-se ainda mais angustiante com a companhia da poeira que se libertava a espaços das obras de remodelação da estação. Indiferentes ao vai e vém de gente, os homens das obras continuavam a martelar, a cavar, e a soldar. Seguiu caminho, rua acima, não tinha coragem para se meter noutro transporte público só para não ter de andar umas quantas centenas de metros sempre a subir. Para mais, gostava daquele vento de princípio de outono que vinha beijar a sua face. E o cansaço também não o deixava andar muito depressa. Por isso ia ouvindo as suas músicas e olhava o pequeno mundo que o rodeava, cada vez mais repleto de pessoas, cada vez mais claustrofóbico e labiríntico, graças aos prédios corbusianos que cresciam como cogumelos. Já quase não sentia os pés quando chegou ao cimo da subida. O sol dava os últimos sinais de vida naquele dia. E quando estava a chegar à sua porta, ouviu quase imperceptivelmente, a acompanhar a música dos auscultadores, alguém chamar por si. Voltou-se e à frente do sol apenas conseguiu distinguir uma silhueta. Uma silhueta que o fez esquecer de tudo e de todos os que tinham povoado mais aquele dia rotineiro da sua vida. E enquanto esboçava um sorriso na direcção da cada vez mais próxima silhueta, pelos seus tímpanos a dentro entrou aquele som reconfortante que tantas vezes tinha ouvido nos braços da sua silhueta. E nesse momento, sem o poder controlar, e sem perceber muito bem porquê, derramou uma pequena lágrima. Uma pequena lágrima que ainda corria pelo seu rosto quando a sentiu finalmente de volta ao seu corpo.



6 comentários:

PenaBranca disse...

corbusianos? o quê, aí??? deves estar enganado.

:-D

Nuno Guronsan disse...

És capaz de ter razão...
A conspiração da prateleira afectou-me mesmo o cérebro...

;)

AR disse...

Mais um bonito texto que nos deixa uma leveza nostálgica...

É sempre bom vir aqui.

AR

Nuno Guronsan disse...

Obrigado pela preferência e pelas simpáticas palavras, AR.

Abraço.

Devaneante disse...

Gostei! Belo texto.

Nuno Guronsan disse...

Obrigado, Cantinho. Seja sempre bem-vindo.

Abraço.