terça-feira, outubro 21, 2008

Dia bom

[Obrigado, amigo, pelas palavras oferecidas e por tudo o resto, que não é pouco.]

"(Para o Espaço Cinzento ou não, como queiras. Pareceu-me que andas sem inspiração, e assim aproveitei a minha rara de hoje. Apeteceu-me.)

Lá está ele outra vez: o famigerado espelho retrovisor. Todas as vezes que entras no carro, seja o teu ou não, olhas para ele. Tornou-se um hábito rotineiro, obrigatório, sempre com um pequeno toque para o ajustar ou para ajustar o que vês nele. Ou o que queres ver nele. Tornou-se no teu companheiro de viagem, qual caixinha mágica, teu televisor privado. Mas o que vês não é o teu reflexo, é o teu passado, é o teu futuro, são os teus medos e as tuas alegrias. E vais percorrendo quilómetros assim, fazendo sol ou não. Segues o teu caminho, segues as estradas que foram toldadas à tua frente.

Hoje chove intensamente. Apesar de teres as escovas dianteiras e traseiras a desviar a água dos teus vidros o mais que podem, não consegues ver nada em direcção alguma. Parece que há uma opaca cortina cinzenta que te envolve. No entanto, o teu espelho preferido mostra-te hoje o filme da tua vida. Nele já viste o que se passou à tua volta: o passageiro que ameaçava a condutora, o marido com o cano da pistola virado ao peito da esposa, a senhora que se maquilhava num carro vizinho, as saudades que tinhas dos teus mais próximos, os amigos que se casaram e se divorciaram. Hoje, é a tua vida que está em exibição nesse cinema só teu.

Esse filme de hoje é especial. Não te mostra o que conheces de ti, mostra-te vários filmes ao mesmo tempo, todos sobrepostos, todos paralelos e que começam no preciso momento em que ligas a ignição do carro. Mostra-te os vários desafios que tens pela frente, as possíveis alternativas para cada um deles, as muitas estradas que podes escolher para chegares ao teu destino. Mas não te mostra o destino final e é isso que te preocupa.

O visionamento deixa-te obcecado e esqueces-te que estás ao volante e em poder de uma arma mortífera que não podes negligenciar. Estás desligado da realidade, só vês o teu filme. Nesse instante, uma forte rajada de vento e um trovão abanam o veículo. Até o rádio emudeceu. Acordas do sonho acordado e encostas o carro para te poderes acalmar, para diminuir a adrenalina que corre nas tuas veias. O teu coração bate forte, o sangue corre-te pelas veias a uma velocidade que parece impossível.

Se estivesse sol, se não tivesses esses horários violentos a cumprir, sabias que te poderias refugiar no teu bar-esplanada favorito à beira mar, fizesse calor ou não, desde que houvesse um raio de sol para te aquecer a alma e um bom livro para te alimentar a imaginação. Se. Mas não, continuava a chover intensamente e pelos vidros não vias nada por muito que te esforçasses. Só o espelho continuava a exibir o teu filme. Assim ficaste ao longo de minutos, horas, ou mesmo dias? Não sabias se já estavas em condições de continuar a tua viagem ou se deverias continuar na berma, à espera, em quase eterna pausa para continuar. Apenas sentias esses suores frios provocados pelos calafrios e ansiedades.

Enquanto estás parado, não consegues tirar o olhar do espelho. Os actores principais já entraram em muitos castings, já os conheces de outros filmes antigos. Mas a meada da história parece não te fazer sentido algum: partes da história já metem sangue, gumes afiados de canivetes de barbeiro, lava intensa a correr pelos sucalcos do teu país e que o transformam em terra eternamente queimada e infértil, lutas fúteis com torrentes de água gélida muitas vezes mais fortes que tu. Que sentido faz isto tudo? Ainda por cima não tens comando para desligar o teu televisor privado, quanto mais para fazer rewind ou fast forward. O cinto de segurança prende-te ao assento, a tempestade aprisiona-te no teu veículo. É sufocante e já nem sabes o que podes sentir. Mas ris-te no teu silêncio.

Bruscamente acordas do transe, todo transpirado e ofegante pelo que acabas de viver. Afinal foi apenas e só um sonho. Um sonho que pareceu realidade, um sonho que durou toda a noite, uma noite que pareceu infindável. Mas nada é eterno, sabes isso. E olhas pela janela. Está um sol radiante, um azul de céu que faz lembrar o mar calmo, uma brisa fresca que convida a passear à beira mar. E decides pegar no teu carro, sem medos de filmes, sem medos de espelhos, e vais para o teu bar-esplanada favorito com um livro na mão e boa música no ar. E sorris.

Sorris, porque reconheces ao longe, neste dia especial, o The Happy Birthday Song contido na misteriosa produção de ovos do André Pássaro. Haja muitos mais dias assim."





4 comentários:

A disse...

Meu querido amigo... é mais um ano que passa, mais uma página de um livro que se quer cheio, imenso... fico à espera de um post tipo balanço, daqueles que dão mais do autor e menos das suas histórias :)


::::: desafio-te!!!!


beijo rápido. diverte-te!

Cate disse...

Realmente... não sei se poderias pedir melhor inspiração! Gostei imenso do texto, por isso, nada mais posso esperar que as tuas reinspirações. =)

Beijos.
Andreia

Patricia Dias disse...

Se me cruzasse com este condutor diria para ele se livrar da preocupação de chegar a um destino e apreciar verdadeiramente a viagem.

Virar para o lado contrário ao que deveria seguir e não ter medo de avançar nos cruzamentos.

Existem demasiados caminhos por descobrir. Porquê perder tempo a palmilhar aqueles que já foram percorridos vezes sem conta.

(se dito isto ele me fizesse um gesto menos bonito, dava-lhe uma buzinadela e esperava até o encontrar novamente no próximo sinal vermelho... não custa tentar duas vezes ;)

***

kiduchinha disse...

MUITOS PARABÉNS AMIGO!!! Continua com muita energia!! beijocas grdsingessed