"(Para o Espaço Cinzento ou não, como queiras. Pareceu-me que andas sem inspiração, e assim aproveitei a minha rara de hoje. Apeteceu-me.)
Hoje chove intensamente. Apesar de teres as escovas dianteiras e traseiras a desviar a água dos teus vidros o mais que podem, não consegues ver nada em direcção alguma. Parece que há uma opaca cortina cinzenta que te envolve. No entanto, o teu espelho preferido mostra-te hoje o filme da tua vida. Nele já viste o que se passou à tua volta: o passageiro que ameaçava a condutora, o marido com o cano da pistola virado ao peito da esposa, a senhora que se maquilhava num carro vizinho, as saudades que tinhas dos teus mais próximos, os amigos que se casaram e se divorciaram. Hoje, é a tua vida que está em exibição nesse cinema só teu.
Esse filme de hoje é especial. Não te mostra o que conheces de ti, mostra-te vários filmes ao mesmo tempo, todos sobrepostos, todos paralelos e que começam no preciso momento em que ligas a ignição do carro. Mostra-te os vários desafios que tens pela frente, as possíveis alternativas para cada um deles, as muitas estradas que podes escolher para chegares ao teu destino. Mas não te mostra o destino final e é isso que te preocupa.
O visionamento deixa-te obcecado e esqueces-te que estás ao volante e em poder de uma arma mortífera que não podes negligenciar. Estás desligado da realidade, só vês o teu filme. Nesse instante, uma forte rajada de vento e um trovão abanam o veículo. Até o rádio emudeceu. Acordas do sonho acordado e encostas o carro para te poderes acalmar, para diminuir a adrenalina que corre nas tuas veias. O teu coração bate forte, o sangue corre-te pelas veias a uma velocidade que parece impossível.
Se estivesse sol, se não tivesses esses horários violentos a cumprir, sabias que te poderias refugiar no teu bar-esplanada favorito à beira mar, fizesse calor ou não, desde que houvesse um raio de sol para te aquecer a alma e um bom livro para te alimentar a imaginação. Se. Mas não, continuava a chover intensamente e pelos vidros não vias nada por muito que te esforçasses. Só o espelho continuava a exibir o teu filme. Assim ficaste ao longo de minutos, horas, ou mesmo dias? Não sabias se já estavas em condições de continuar a tua viagem ou se deverias continuar na berma, à espera, em quase eterna pausa para continuar. Apenas sentias esses suores frios provocados pelos calafrios e ansiedades.
Enquanto estás parado, não consegues tirar o olhar do espelho. Os actores principais já entraram em muitos castings, já os conheces de outros filmes antigos. Mas a meada da história parece não te fazer sentido algum: partes da história já metem sangue, gumes afiados de canivetes de barbeiro, lava intensa a correr pelos sucalcos do teu país e que o transformam em terra eternamente queimada e infértil, lutas fúteis com torrentes de água gélida muitas vezes mais fortes que tu. Que sentido faz isto tudo? Ainda por cima não tens comando para desligar o teu televisor privado, quanto mais para fazer rewind ou fast forward. O cinto de segurança prende-te ao assento, a tempestade aprisiona-te no teu veículo. É sufocante e já nem sabes o que podes sentir. Mas ris-te no teu silêncio.
Bruscamente acordas do transe, todo transpirado e ofegante pelo que acabas de viver. Afinal foi apenas e só um sonho. Um sonho que pareceu realidade, um sonho que durou toda a noite, uma noite que pareceu infindável. Mas nada é eterno, sabes isso. E olhas pela janela. Está um sol radiante, um azul de céu que faz lembrar o mar calmo, uma brisa fresca que convida a passear à beira mar. E decides pegar no teu carro, sem medos de filmes, sem medos de espelhos, e vais para o teu bar-esplanada favorito com um livro na mão e boa música no ar. E sorris.
Sorris, porque reconheces ao longe, neste dia especial, o The Happy Birthday Song contido na misteriosa produção de ovos do André Pássaro. Haja muitos mais dias assim."
4 comentários:
Meu querido amigo... é mais um ano que passa, mais uma página de um livro que se quer cheio, imenso... fico à espera de um post tipo balanço, daqueles que dão mais do autor e menos das suas histórias :)
::::: desafio-te!!!!
beijo rápido. diverte-te!
Realmente... não sei se poderias pedir melhor inspiração! Gostei imenso do texto, por isso, nada mais posso esperar que as tuas reinspirações. =)
Beijos.
Andreia
Se me cruzasse com este condutor diria para ele se livrar da preocupação de chegar a um destino e apreciar verdadeiramente a viagem.
Virar para o lado contrário ao que deveria seguir e não ter medo de avançar nos cruzamentos.
Existem demasiados caminhos por descobrir. Porquê perder tempo a palmilhar aqueles que já foram percorridos vezes sem conta.
(se dito isto ele me fizesse um gesto menos bonito, dava-lhe uma buzinadela e esperava até o encontrar novamente no próximo sinal vermelho... não custa tentar duas vezes ;)
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MUITOS PARABÉNS AMIGO!!! Continua com muita energia!! beijocas grdsingessed
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