O sol está a morrer, lentamente, atrás da serra.
A luz vai-se desvanecendo, enquanto ao longo da estrada vão nascendo pequenos pirilampos de electricidade. António continua as suas passadas, de óculos escuros, escondendo os olhos inchados da pouca luz que ainda o rodeia. As suas lágrimas já secaram, ainda que por dentro tudo pareça tão estilhaçado como no dia anterior. Tinha a fugaz esperança de que a manhã de hoje significasse o término de tudo. Do seu sofrimento, do ambiente de tristeza em que tinha navegado nos últimos dias, dos conselhos e palavras amigas que já não suportava ouvir, de todo um mar de gente que ameaçava engoli-lo, sufocá-lo, simplesmente torná-lo apenas mais uma peça da engrenagem. Mas a sua esperança, tal como aquele dia, permanecia escondida nas sombras dos seus recessos interiores. Afinal, era nas sombras que a morte se ocultava e esperava, pacientemente, pelos seus parceiros de viagem, que a acompanhariam para longe de quem os amava. Para longe de António.
O tempo estava esquisito. Tanto havia sol, como nuvens no minuto seguinte.
Já caminhava há algumas horas. É claro que não sabia para onde, a vida, para ele, ainda mal tinha começado. E nem sequer se podia denominar de vida, o que quer que fossem os seus dias a partir dali. Uma sucessão infinita de horas, minutos, segundos, sem que António pudesse formar uma ideia que fosse na sua mente. Algo que não lhe recordasse os olhos de Ana, os cabelos de Ana, o sorriso de Ana, os lábios de Ana, o perfume de Ana, o sussurrar de Ana, as mãos de Ana, a sua vida sem Ana. O peito apertava-se-lhe mais uma vez. Já não tinha nada dentro de si. Já não haviam palavras, gestos, olhares, pensamentos, nada que pudesse apagar aquela dor que carregava consigo naquela caminhada junto à estrada. Parecia que a dor o rasgava em dois. Dois farrapos de papel turvos e amarrotados, deixados a vogar de acordo com a direcção do vento, que ele desejava que soprasse para longe dali, para os braços de uma impossibilidade física.
O frio aumentava, um frio cruel como navalhas.
Tinha sido o último a abandonar o cemitário. As suas pernas eram como raízes, cravadas no solo, agarrando-o ao que restava do seu coração. Ana estava mesmo ali. Mas já não era ela. Era apenas um casulo, abandonado pela única pessoa que ele tinha amado com todas as suas forças. Ana tinha entrado na sua vida como um profeta, abrindo as águas e salvando-o de um mar revolto que teria, com toda a certeza, levado António para um caminho bem diferente, escuro, cruel, ingrato. Mas ela tinha assegurado que isso não acontecesse. Com um gesto apenas tinha-o resgatado, com um amor que não conhecia barreiras de nenhuma espécie. Pelo menos ele assim o tinha acreditado. Mas agora já não sabia se valia a pena acreditar em alguma coisa. A lápide, branca e imaculada, escarnecia de todos os seus sonhos e de todo o seu sofrimento. António sentia-se resvalar de novo para o mar revolto. Sem a sua luz, morta e enterrada, ele não sabia o que seria de si. O mundo parecia ter sido coberto por uma espessa névoa na qual ele apenas podia deambular como uma alma perdida, um sucedâneo cinzento daquilo que António tinha sido ao lado de Ana. E o olhar perdido, eternamente vago, eternamente manchado pela ausência do olhar de quem significava tudo para ele.
A noite tinha chegado. À noite a sua alma era um fogo que o consumia.
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