quarta-feira, outubro 31, 2007

Darfur - Bagdade - Cabul - ...

Páro e a minha respiração fica suspensa. Olho o teu rosto. Os teus olhos parecem dois enormes buracos negros, com o olhar perdido algures. Apenas tens sobre ti uma camisa suja e demasiado grande para o teu pequeno tamanho. Mesmo assim, por baixo dela, consigo contar todas as tuas costelas, pequeninas e estreitas, tal como a criança que és. Os teus braços elevam-se na minha direcção, procurando uma ajuda que tarda em chegar e que muito provavelmente vai chegar demasiado tarde. Sente-se que tens uma sombra de morte sobre ti, um peso enorme para um ser tão pequeno como tu. Fecho os olhos antes que as lágrimas façam sentir a sua presença.

A tua cara mudou. O tom da pele é agora muito mais claro e os teus olhos passaram a ser duas pequenas fendas numa cara pálida, num rosto sujo sob um cabelo desgrenhado. Percebo que alguém te limpou a cara, mas mesmo assim as manchas ainda são perceptíveis. As mesmas manchas vermelhas e negras que ensopam as tuas roupas. Fisicamente pareces estar ilesa, o sangue deve ser na sua quase totalidade de outrém, mas olhando-te, assim indefesa e com as lágrimas percorrendo a tua face, sei bem que tens cicatrizes, daquelas profundas que te irão acompanhar pelo resto da tua vida que ainda agora está a começar. Tento imaginar quem te terá defendido das balas, quem terá trocado a sua vida pela tua, e fico na dúvida se eu próprio seria capaz de tamanho sacríficio, de me imolar só para que tu pudesses viver mais um dia num país infernizado pela guerra. E desta vez as minhas lágrimas acompanham as tuas.

Deixei de ver a tua cara. Continuas a ser uma criança mas sem rosto. Esse foi tapado, por alguém com uma mente ainda mais tapada. Não sei qual é o teu aspecto por baixo dessa túnica fechada que te cobre até aos tornozelos. Há um pequeno rendilhado sobre os teus olhos que não os esconde completamente. Sinto um aperto no coração ao constatar que estou a olhar para uma criança que está numa prisão, atrás de grades feitas de tecido, que a vão enclausurando a cada dia que passa. Vejo-te sem liberdade, oprimida, impedida de ser uma verdadeira criança, daquelas que riem e brincam e correm e sorriem. Tudo sentimentos que nunca irás experimentar, apenas porque os teus genes ditaram para ti um sexo diferente daquele que te governa e explora com punho de ferro. Sinto asco e vergonha de pertencer a esse mesmo sexo que te obriga a crescer antes de tempo. Estendo a minha mão para ti, na vã esperança de te poder salvar de um destino implacável.

A minha mão toca no ecrãn do televisor. As imagens vão passando e mais crianças aparecem, de diferentes países e continentes, mas quase todas com o mesmo destino marcado. Fome, guerra, maus-tratos, descriminação, xenofobia, tudo isto elas sofrem na pele. E eu sinto-me impotente, ao ver as suas faces, dia após dia, reportagem após reportagem. E limito-me a chorar lágrimas amargas por elas. Por todas elas.

4 comentários:

Abssinto disse...

Um mundo que nos esmaga com as suas injustiças e "desequilibrismos". Incompreensível, passados sei lá quantos milhares de anos que tem a civilização.

abraço

Nuno Guronsan disse...

Meu caro, acho que ainda estamos muito longe de podermos ser considerados uma "civilização". Pelo menos enquanto continuarem a ocorrer situações como estas...

Abraço.

cuotidiano disse...

Somos só o estado intermédio entre o macaco e o ser humano...


Abraço

Nuno Guronsan disse...

Eu diria que até os macacos estão num nível elevado quando comparados connosco enquanto "raça"...

Abraço, meu caro.