Havia um problema. O problema de estar sempre a cortar-se. Quer se tratasse de um monte de papelada ou do canivete suiço com que costumava descascar a sobremesa, lá aparecia um traço de vermelho vivo nas suas delicadas mãos. Ao princípio, quando não compreendia o que se passava, ficava inquieto, corria de um lado para o outro, gritava pela mãe e pedia ao pai para ligar para o 115. Sentia a cabeça leve como uma pena, a sua pele ficava da cor da neve e o vermelho parecia ainda mais vermelho nas suas mãos. Não raras vezes acabava no chão da casa de banho, a limpar os lábios depois de ter vomitado o que quer que se encontrasse na altura no seu pequeno estômago. Foram tempos difíceis, incapaz de lidar com aquela sina que o iria acompanhar por toda uma vida. Aos poucos, foi-se conformando, criando um sentimento de quase apatia, encarando aquele aspecto da sua fisionomia como apenas mais um. Os tremores e os suores frios foram sendo substituídos por uma calma quase clínica e passou a ser o pronto-socorro de plantão de todos aqueles que o rodeavam no seu quotidiano. Os cortes nas suas mãos e nos seus dedos continuaram a ocorrer mas poucas pessoas faziam ainda caso disso. Ele seria mesmo o primeiro a dizer-lhes que aquilo era incrivelmente vulgar, dizendo-o descontraidamente enquanto estancava o sangue que teimava em aparecer, umas vezes apenas ao de leve, outras jorrando como um rio. Apesar disto, ou por causa disso mesmo, conseguiu mesmo assim encontrar o amor. Um amor envolvente e protector, sendo que nos braços dela sentia-se protegido de tudo aquilo que o marcava com cortes ensanguentados, fossem eles à superfície ou no seu interior. O vermelho do sangue corria agora com mais força para o seu coração, à medida que a sua pulsação aumentava na antecipação de estar com ela, de a beijar, de lhe tocar, de ser um com ela. E o amor que sentia era tão grande que, lentamente, a pouco e pouco, os cortes foram aparecendo de forma cada vez mais espaçada. De horas para dias, de dias para semanas, de semanas para meses. O amor cura? Parece que no seu caso não era apenas um cliché literário, retirado de um qualquer poema de um qualquer poeta pseudo-atormentado. E os seus dias passaram de vermelhos para azuis, a cor dos olhos dela. E a sua vida parecia diferente, ou melhor, parecia que ele tinha saído de uma outra vida e aberto a porta para algo de tremendamente diferente, quase uma realidade alternativa. Até um dia. Até uma fatídica tarde. Aquela tarde em que descobriu que o seu amor, a sua razão de viver, tinha preferido lançar-se nos braços de outra criatura, longe dos seus braços-livres-de-cortes. Sentiu-se vazio por dentro. Se dependesse dele, o seu coração teria parado nesse preciso momento. Assim, tentou o método mais próximo. Pegou numa faca, aproximou-a dos seus pulsos e desenhou dois cortes perfeitos sobre as suas veias. Antevendo a visão do vermelho imparável, deixou-se escorregar para o chão, encostado a uma das paredes da sua casa. Mas o sangue não aparecia. Incrédulo, olhava fixamente para os dois cortes nos seus pulsos, dos quais nem uma gota de sangue parecia sair. Que cruél partida seria aquela? Teria ele gasto todo o seu sangue durante a sua vida de cortes, uns atrás dos outros? Não sabia o que pensar, sentia-se perdido, desligado, um pequeno ponto numa existência quase perdida. Deixou-se ficar ali, no chão, de olhar perdido na outra parede, enfrentando aquele outro olhar que nunca o tinha deixado chorar, derramar lágrimas.
7 comentários:
Oh Nuno!!!
:)
Ainda não li o teu fantástico texto (é que escreves mesmo bem, fá-lo-ei mais tarde) pelo simples facto de me sentir esmagada pela imagem...
Passo a explicar: ainda no outro dia corri a net à procura dessa imagem para fazer um post - hoje vai mesmo ter de ser.
LOL
Mi aguardji....
Beijos
Uma imagem vale mil palavras... Bom nem sempre!
Neste caso a imagem não faz minimamente jus ao teu texto, infinitamente superior ao clássico foleiro, "o mariquinhas"!
:)
Beijos
wow!
(nao pela imagem, pelo texto! definitivamente publicavel em livro)
Eu aguardo, eu aguardo. Mas o teu post com o menino está muito bom. :)
Pois, mas quer dizer, comparando com o choramingas qualquer tipo de prosa só poderia ser bom, não é? A fasquia não estava assim tão elevada... :*
Devias ter-te ficado pelo wow. Assim ainda ficaria com a fugaz esperança que te referias ao chorão... :D
Bem.... li agora (e eu não me esqueci do prometido, de continuar o post, não tenho é culpa de teres escrito aquilo tão bem e tipo "passar a batata quente pás minhas manitas" lol)
Adiante...
Este teu post oscila entre o Spooky e o sobrenatural... entre o surreal e o nonsense... cortes nos pulsos sem sangue? Esteticamente é mesmo muito bom ;)
E continuação? (acho que vou pegar neste ehehe)
Beijos, meu caro... e bom fim-de-semana
(E viva a Pimba Art!)
Minha querida, estás à vontade para pegar neste ou noutro. Se bem que eu gostava de ver como é que davas a volta à batata quente... ;)
Spooky, sobrenatural, surreal, nonsense... Isso são coisas boas para o Gaiman, quem me dera a mim chegar a esse nível... Se bem que eu gostava mesmo era de ser o Douglas Adams :)))
Beijos.
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