sexta-feira, abril 24, 2015

o sal da vida

                                                       " (...) E elenca, então por
um processo de associação espontânea, aquilo de nós que não
vemos ou não chegamos a valorizar devidamente: perceções, peque-
nos prazeres, detalhes dolorosos ou alegres, momentos de humor,
curiosidades, lugares, flagrantes quotidianos. Deixo-vos com
alguns exemplos: assobiar com um fio de erva na boca; limpar
o prato com um bocado de pão; assistir a uma cavalgada num
western; saltar à corda que duas amigas fazem girar sempre mais
rapidamente; sentar-se com as próprias forças na cama de um
hospital; recordar-se já sem vergonha das imbecilidades que fize-
mos lá atrás; cair do pódio à frente de cem pessoas; dançar mara-
vilhosamente a valsa, mas também a rumba, o tango e o rock'n'roll;
passar uma noite em branco para ler até ao fim um romance;
escrever à mão; perder tempo a formular melhor uma ideia;
improvisar durante a semana um jantar de amigos; perder-se a
contemplar um formigueiro que ferve de atividade; não fazer de
conta que não se vê o sofrimento alheio; não conseguir recordar-se
da sequência de uma anedota, apesar de todo o esforço; preparar
uma mousse de chocolate seguindo a receita (cheia de manteiga)
herdada da avó; respirar devagar e de olhos fechados num prado;
amar as palavras, degustando a sua sonoridade; reencontrar no
armário o calçado de verão, quando ainda é inverno; pensar com
prazer nos encontros que nos mudaram a vida; ser feliz quando os
outros o são."

José Tolentino Mendonça

 

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