quinta-feira, outubro 08, 2015

A Noite e a Madrugada

    "Raia de Espanha. Serranias azuis e violentas que se ama-
ciam subitamente em olivais, campinas de trigo, planaltos de
terra vermelha. Caminhos de estevas, de fragas, onde o perigo
sai dos barrancos e dos muros, ou caminhos melancolicamente
guarnecidos de plátanos, abrindo clareiras na mata de pinheiros
mansos, de um verde calmo e opulento, onde se escondem os
celeiros das companhias agrícolas. Mas antes de os ganhões
desempregados e os contrabandistas de profissão chegarem a
essas terras têm de atravessar os baldios do seu país. Para
cá das faldas desabrigadas, com o rio Erges esmagado entre
muralhas de granito, o casario nasce dos moinhos afogados nas
enxurradas, sobe penosamente as margens das ribeiras, aga-
cha-se à sombra das rochas e espraia-se por fim em aldeolas
mesquinhas. Depois vem a planície, triste como um descampado,
devassada pelo vento de Espanha, que satura o ar de poeira
e solidão. Planície nua, crestada pelo sol, que amadura as infin-
dáveis searas de trigo."

Fernando Namora

 

quarta-feira, outubro 07, 2015

primus inter pares

Tantos e tantos anos sem entrar naquela casa. Apenas passava ao largo. E, no entanto, havia uma enorme vontade de voltar a passar aquelas portas e perceber se a memória continuava a guardar alguma coisa dos tempos passados entre aquelas quatro paredes. Foi preciso acordar cedo, enfrentar a chuva e ir ao seu encontro. Lá dentro, a casa continua exactamente como me lembrava. As colunas, o chão, os azulejos, os vidros, nada mudou. Está tudo bem conservado e parece que voltei décadas no tempo. Aqui e ali, pequenos recantos onde tantas estórias houve, onde tantas amizades nasceram. Mal consigo prestar atenção às palavras e canções que se ouvem ao meu redor, prefiro olhar para ali e para além e deixar a minha mente vaguear por todas as recordações que aquele espaço evoca. Mas a nostalgia vai-se dissipando e lentamente regresso ao presente e vou começando a ouvir as palavra que me chegam da outra ponta da casa. E aí sou atingido pela verdadeira mudança que está ali a acontecer. Ouço palavras que nunca ouvi, palavras que me tratam como o adulto que sou, que não condescendentes e que são realmente deste tempo. Definitivamente parece que o futuro desta casa vai ser diferente, não vai esquecer o seu passado mas parece que vai haver mãos para não deixar a casa morrer, não a deixar eternamente no passado. E fico satisfeito, sorrio e fico deveras surpreendido com tudo isto. Mas, repito, fico satisfeito que assim seja. Talvez que não vá ficar novamente tantos anos sem voltar a entrar aqui. Se este for o caminho, sem dúvida que podem contar comigo. E já era tempo de deixar entrar novos ares por aquela porta. Como se costuma dizer, aguardo com muita expectativa os próximos episódios. Bem hajam.


"Nascemos nus, húmidos e com fome. Depois a coisa piora."

 

quinta-feira, outubro 01, 2015

à distância

"Sei agora o que nunca soube - que o amor encontra o seu estado mais puro quando julgamos que o fim chegou; finalmente entendo que o amor pode ser precisamente essa ausência, o deixar de estar, ser capaz de apreciar cada minuto da nossa memória como se segurássemos, entre as mãos, um punhado de brasas num deserto de gelo."


João Tordo