sexta-feira, abril 24, 2015

o sal da vida

                                                       " (...) E elenca, então por
um processo de associação espontânea, aquilo de nós que não
vemos ou não chegamos a valorizar devidamente: perceções, peque-
nos prazeres, detalhes dolorosos ou alegres, momentos de humor,
curiosidades, lugares, flagrantes quotidianos. Deixo-vos com
alguns exemplos: assobiar com um fio de erva na boca; limpar
o prato com um bocado de pão; assistir a uma cavalgada num
western; saltar à corda que duas amigas fazem girar sempre mais
rapidamente; sentar-se com as próprias forças na cama de um
hospital; recordar-se já sem vergonha das imbecilidades que fize-
mos lá atrás; cair do pódio à frente de cem pessoas; dançar mara-
vilhosamente a valsa, mas também a rumba, o tango e o rock'n'roll;
passar uma noite em branco para ler até ao fim um romance;
escrever à mão; perder tempo a formular melhor uma ideia;
improvisar durante a semana um jantar de amigos; perder-se a
contemplar um formigueiro que ferve de atividade; não fazer de
conta que não se vê o sofrimento alheio; não conseguir recordar-se
da sequência de uma anedota, apesar de todo o esforço; preparar
uma mousse de chocolate seguindo a receita (cheia de manteiga)
herdada da avó; respirar devagar e de olhos fechados num prado;
amar as palavras, degustando a sua sonoridade; reencontrar no
armário o calçado de verão, quando ainda é inverno; pensar com
prazer nos encontros que nos mudaram a vida; ser feliz quando os
outros o são."

José Tolentino Mendonça

 

sexta-feira, abril 17, 2015

Fonte

VI

"Estás verdadeiramente deitada. É impossível gritar sobre esse abismo
onde rolam os cálices transparentes da primavera
de há vinte e dois anos. Quando aperto as pálpebras
ou descubro o teu nome como uma paisagem,
só há grutas virgens onde os candelabros se apagam.
Mãe, pouco resta de ti na exaltação do mundo. Às vezes
misturas-te um pouco nos terrores da noite ou olhas-me,
vertiginosa e triste, através
das palavras.

No outro lado da mesa estás inteiramente
morta. Parece que sorris de leve no meu
pensamento, mas sei que é apenas
a solidão espantada. Como pudeste morrer
tão violenta e fria,
quando os meus dedos começavam a agarrar-te
a cabeça inclinada dentro
das luzes? Não podes levantar-te dos retratos antigos
onde procuro afogar-me como uma criança
nocturna. E não atravessaremos juntos as cidades redentoras,
perdidos um no outro, sorrindo
como se estivéssemos debaixo de uma árvore inspirada e eterna.

Conheço algumas cidades da europa e a fantasia vagarosa
da cidade da minha infância.
Tu desapareceste. É um erro
das musas distraídas. Não há guindaste que te levante
do coração das águas
onde apodreceste envolvida no halo do teu amor invisível,
ou recolhida na tua carne rápida, ou
ligeiramente tocada pelo ardor
de uma existência pura. Conheço grandes casas
onde não habitas, flores que cheiro, tarefas
silenciosas que cumpro humildemente, e luzes,
instrumentos de música,
laranjas que devoro sentindo o gosto da vida desde a garganta
às mais finas raízes das vísceras. Tu
desapareceste.

Imagino que seria possível tocares porventura
a minha boca. Tocares-me tão viva ou tão misteriosamente
que eu estremecesse nas traves
da cega inspiração. Poderias estar vergada sobre os meus
ombros até que as lágrimas
na minha boca se confundissem com a ansiosa subtileza
dos teus dedos, e eu me sentisse
perdido entre os pilares e os túneis das cidades
ressoantes.

Depois talvez pudesses vir com o rosto um pouco coberto de poeira,
e os olhos delicados de mulher restituída,
e os pés brilhando sobre os caminhos do meu silêncio exaltado
- talvez
pudesses salvar-me como uma palavra pode
salvar um pensamento, ou uma
breve música pode acordar do abismo inocente
da noite
um instrumento encerrado nas cordas extenuadas."

Herberto Helder



sexta-feira, abril 10, 2015

domingo, abril 05, 2015

o amor em visita

"(...)

Beijar teus olhos será morrer pela esperança.
Ver no aro de fogo de uma entrega
tua carne de vinho roçada pelo espírito de Deus
será criar-te para luz dos meus pulsos e instante
do meu perpétuo instante.
- Eu devo rasgar minha face para que a tua face
se encha de um minuto sobrenatural,
devo murmurar cada coisa do mundo
até que sejas o incêndio da minha voz.

(...)"

Herberto Helder