quinta-feira, outubro 25, 2012

Mantra


(relembrando coisas do passado enquanto se prevê trovoadas para a noite...)




quarta-feira, outubro 24, 2012

Molha

Dia de chuva. E enquanto o carro rodava pelos paralelipípedos da cidade, e as escovas funcionavam no máximo, veio-me à memória uma recordação longínqua de um outro dia chuvoso. Não devia ter mais de onze anos. Torneio de futebol na escola. Nada de relvados nem sintéticos, apenas um campo de gravilha acimentada (não consigo arranjar melhor descrição). O dia até tinha começado com sol e nada de frio, de modo que me lembro que todos nós jogávamos de calções e camisas de manga curta. Lembro-me de alguns com camisas oficiais dos clubes do seu coração e lembro-me de outros com t-shirts compradas na praça. Lembro-me de ter jogado à baliza. Sei que defendi alguns remates e sei que deixei entrar outros tantos. Não sei quanto ficou o jogo, se ganhámos ou se perdemos (nunca havia empates), e sei que ficou um joelho esfolado, com riscos de sangue pisado e escuro. O que me lembro realmente bem é que durante o jogo começou a chover. A princípio umas gotas tímidas e com pouca vontade de molhar mas que rapidamente se foram juntando para acabar com o nosso jogo. Até que às tantas estávamos a jogar com um dilúvio a cair sobre nós. A chuva era tão cerrada que às vezes nem conseguia ver quem levava a bola, se nós se os da outra equipa. Mas nós continuávamos a jogar, por mais poças de água que houvesse no campo, por mais gente que largasse das bancadas a correr para abrigos secos. E nós continuávamos a correr e atirarmo-nos para o chão, gravilha e água a agarrar-se aos nossos corpos. Até que me lembro de um dos contínuos vir interromper o jogo, a gritar para irmos para os balneários, para nos irmos embora que nesse dia não haveria mais jogos. E nós, refilando e barafustando com aquele que era o maior (único?) adepto do Belenenses naquela escola, lá fomos para dentro de portas, procurando os chuveiros quentes. Mas nesse dia não havia mais aulas. E, para não variar muito, também não havia água quente. O cilindro devia ter ido ao ar mais uma vez. E a partir daqui não me lembro se todos nos decidimos pelo passo seguinte ao mesmo tempo, ou se foi ideia de algum apenas, ou se foi daquelas coisas em que não precisávamos de falar uns com os outros. O certo é que simplesmente aconteceu. Todos pegámos nas nossas mochilas e, sem trocarmos de roupa e ainda equipados, fomos para a rua, para o meio da chuva, em direcção às nossas casas. Foi das maiores molhas que apanhei até hoje. Ainda que fossem apenas uns quinze minutos a pé até à maior parte das nossas casas, ficámos encharcados até aos ossos e, enquanto passávamos pelas pessoas de chapéu aberto que procuravam o interior dos passeios, ríamo-nos e ríamo-nos, uma vezes a correr, outras á espera das ondas de água provocadas pelos carros que passavam. E ríamo-nos mais um pouco, e recordávamos os passes e os golos e as defesas do jogo. E a chuva, que continuava a cair impiedosamente, não apagava os nossos sorrisos e as nossas cumplicidades. E enquanto cada um ia chegando ao seu destino, lá nos despedíamos, até amanhã, trazes tu a bola?, sim, não te esqueças dos apontamentos de inglês, ficaste de me trazer uma banda-desenhada, ok, e lá seguíamos caminho, certos de que quando chegássemos a casa iríamos ouvir os ralhetes da nossa vida, ainda que ao mesmo tempo viria a toalha mais macia para nos secar o esqueleto. E agora que estou quase a chegar a casa e a chuva vai dando lugar a uns raios de sol desfocados, lembro-me dos nomes. Do Jorge, do Bruno, do Hilme, dos gémeos. De como juntos tínhamos os momentos mais felizes das nossas vidas e que nenhuma chuva torrencial conseguia dobrar-nos o espírito. Sabe bem voltar lá atrás e reviver estas pequenas memórias...


domingo, outubro 21, 2012

21 de Outubro de 1976

Mais um dia de alegria e afectos para juntar às páginas da memória sentimental.
E confirma-se, as coisas simples são as que mais alegram o meu coração.
Obrigado, José e Maria, por estarem sempre ao meu lado, desde sempre.
Obrigado a todos os outros que ao longo do dia ficaram um bocadinho mais perto de mim.
Não me canso de o repetir.
Sois grandes. Enormes.

sexta-feira, outubro 19, 2012

Cada vez mais relevante...


(ainda assim, e ironias à parte, isto lembra-me tempos felizes, o que é meio caminho para esquecer as demais tristezas e depressões... :))


quinta-feira, outubro 18, 2012

Mil homens

Um restaurante quase vazio. António entra quase a medo, não sabe se fez bem em escolher aquele sítio para matar a fome. Mas também não havia muita escolha. Tinha que parar em algum sítio e de cada vez que percorria mais um quilometro sentia-se ainda mais perdido. E isso aumentava ainda mais a sua natural insegurança. Mesmo assim lá entrou, quase a medo como já se disse. Numa mesa do canto um casal mais o filho vão conversando sobre uma série de pratos fumegantes. Numa outra mesa, em frente ao único televisor da sala, uma senhora de idade que vai acabando de beber um café enquanto observa apreensiva as notícias televisivas. A única outra pessoa presente na sala é um homem alto e magro, camisa branca e calças pretas e que se dirige a ele com um sorriso nos lábios. "Boa tarde. É só o senhor?" António acena que sim e o homem convida-o a sentar numa das mesas vazias. Rapidamente lhe traz um cesto com pão e uma tigela de azeitonas, enquanto vai falando incessantemente sobre os pratos do dia, sem nunca perder o seu sorriso. António não sabe pensar se o homem está a ser genuinamente simpático ou se aquilo é apenas uma cassete de restauração. Após o que lhe parecem horas, lá consegue dizer ao delgado empregado que apenas deseja uma sopa. Pode ser a do dia, uma canja de galinha. O empregado garante-lhe que é uma boa escolha e despede-se com um obrigado na direcção da cozinha. Do outro lado da pequena sala, a senhora desvia o olhar da televisão e, olhando nos olhos de António, diz-lhe "Vai gostar muito da canja. É uma especialidade da Idalina.". António fica surpreendido, mas rapidamente percebe, pelas palavras que a senhora lhe vai dizendo e pelo retrato de um casal pendurado por cima da família do canto, que aquela senhora é filha dos fundadores do restaurante e a provavel actual proprietária do mesmo. A senhora continua a falar com ele sobre comida, o tempo lá fora, as notícias da televisão, a terra onde estão, enquanto António vai interpondo aqui e ali um ou dois monossílabos, limitando-se a maior parte do tempo a ouvir a senhora, nunca se cansado das suas palavras. Talvez que estas pessoas sejam realmente assim, simpáticas e interessadas nos seus clientes. Chega a canja. O empregado deseja-lhe bom apetite e segue para a mesa do canto. A família acabou a refeição e está a pagar a conta enquanto se vão rindo com o empregado de um comentário do filho. António vai comendo a canja e fica maravilhado com o quão saborosa é. Há muito tempo que não comia algo tão bom. Talvez que a última vez tenha sido o prato que a sua mulher lhe preparou na noite antes de partir. Desde esse dia que ansiava por comer algo que lhe lembrasse a sua casa, a sua mulher, o seu filho. E era isso que aquela canja lhe lembrava, o calor da sua terra. A família passa pela sua mesa e todos eles se despedem amistosamente dele e a mulher diz-lhe mesmo "Prove a alhada de cação, vai ver que está uma maravilha!". Despedem-se com sorrisos da dona do restaurante e saem para a rua. António está desconcertado. Já não pensava que pudesse haver pessoas assim. É sinal que está realmente longe de casa, longe das pessoas cínicas e frias da sua terra. Além da sua esposa e filho, já não pensava sequer em algum dia conversar com outras pessoas, quanto mais pessoas desconhecidas. Mas aqueles desconhecidos do restaurante fizeram mudá-lo de opinião. Afinal ainda há esperança para estes dias. António terminou a sua sopa e sentia-se perfeitamente satisfeito. Pediu a conta ao empregado. Este estranhou e perguntou-lhe "Mas o senhor não quer nenhum prato principal? Temos uns quantos do dia e são tão bons.". António agradeceu ao empregado com palavras simpáticas e à senhora de idade, que olhava para ele inquisitoriamente, com um aceno e um sorriso. Sentia-se satisfeito, a canja tinha-lhe aquecido a alma. Enquanto dizia aquilo, António não podia sentir uma certa estranheza nas palavras que dizia, há muito tempo que não usava expressões assim, directamente do coração. Pagou a conta e despediu-se com apertos de mão aos dois e com o desejo que dissessem à D. Idalina que a canja estava maravilhosa. Agradeceu uma e outra vez a hospitalidade e fez votos de que viessem melhores tempos, com mais clientes e sala cheia. Cá fora, o sol dava um ar da sua graça. A chuva e o nevoeiro pareciam ter fugido para outro lado. Enquanto se afastava do restaurante, levou a mão ao casaco e sentiu as formas perigosas do revólver. Não, pensou ele, não desta forma. Aquelas pessoas não mereciam que ele roubasse a caixa registadora. Aquelas pessoas mereciam melhor do que um estranho a estilhaçar a vida deles. Aquelas pessoas estavam a passar pelas mesmas dificuldades que ele. Elas não mereciam estar na mira de uma arma e ele nunca se perdoaria de ser às suas custas que iria pôr comida na mesa da sua família. Sim, ele tinha de lutar pela sua mulher e pelo seu filho com todas as armas que estivessem ao seu dispôr. Mas aquilo não. Roubar aquela casa era algo que ele não podia fazer, algo dentro dele não o deixaria e sentir-se-ia como se estivesse a vender as últimas réstias da sua dignidade. Talvez que fosse altura de se deixar daquela vida, atravessar a fronteira, voltar a casa e arranjar outra forma de trazer dinheiro para a sua família. Talvez que ainda possa haver uma vida decente. Talvez que a honestidade e um sorriso simpático ainda tenham lugar neste mundo...



quarta-feira, outubro 17, 2012

Entretanto nas ilhas...

Um dia, quando fores grande, a tua mãe vai mostrar-te o mundo. Ou melhor, vai mostrar-te todos os mundos que fizeram parte da vida dela. Vai levar-te de norte a sul deste país à beira-mar plantado. Vai levar-te a todos os pedaços de terra flutuante que também fazem parte desse país. E depois vai contar-te sobre os dias em que decidiste largar o conforto da barriga dela e vieste espreitar este estranho mundo cá fora. Vai contar-te que nasceste numa altura em que este país estava, literalmente, de pernas para o ar. Que por todo o lado a dificuldade era mais que muita, que as pessoas andavam tristes e desanimadas, que todos tinham de contar os cêntimos na carteira muito bem contados. E tu vais perguntar-lhe, "mas Mãe, hoje vivemos todos bem, em harmonia, com cada vez menos pobreza, com pessoas sorridentes nas ruas, com o país a prosperar como nunca prosperou. Como é possível que o que me contas tenha, de facto, acontecido?". A tua Mãe vai sorrir, compreendendo as tuas dúvidas. E explicar-te que, felizmente, tu cresceste num país que foi mudando, sempre para melhor, e que todas as nuvens negras se foram dissipando enquanto passavas da roupa de criança para a de adolescente. E vai mostrar-te fotografias, recortes de jornais, endereços de internet que permaneceram no ar, e lentamente vais começar a compreender que o teu mundo, aquele que já é teu, é muito melhor e mais solidário. E vais ficar aliviada e vais abraçar longamente a tua Mãe, como que a reconfortá-la pelos tempos difíceis que ela passou. E ela, apercebendo-se disso, vai contar-te que também teve momentos felizes. E que, mesmo não sendo tudo rosas, também não foi tudo espinhos. E depois vai contar-te a história mais bonita do mundo e os teus olhos vão brilhar enquanto ela te conta como o conheceu o amor da vida dela, o teu Pai. E, quem sabe, até pode acontecer que a tua Mãe te mostre estas palavras que agora escrevo. E pode ser que tu também sorrias ao ler o que aqui te deixo. Para ti desejo apenas uma coisa. Que tenhas muitos momentos de felicidade, de amor verdadeiro, e sobretudo uma longa vida ao lado dos teus pais. Beijos. Grandes.

Para uma Mãe a quem muito me orgulho de chamar Amiga.
Tu sabes quem és.




Do sangue.

Casa cheia por estes dias. Respira-se outra vida dentro destas quatro paredes. Há mais alegria, mais risos, mais cumplicidades, menos solidão. São muitos anos de companhia, intercalados com algumas ausências. Já sabemos muito bem como cada um de nós funciona. Todos os defeitos, as qualidades, as pequenas particulariedades das nossas personalidades. Não somos perfeitos, nenhum de nós é, mas sabemos o que faz animar o coração de cada um e não nos custa ir por esse caminho. Já fez sol, agora chove, mas estamos aqui, alinhados, no nosso amor. Gostava de poder descrever melhor, mas não o consigo. Não se consegue pôr em palavras todas as emoções que nos trespassam enquanto caminhamos juntos, almoçamos juntos, partilhamos pequenos segundos de prazer juntos. Os dias vão correndo, tento estar o mais presente possível, pois a despedida mora já ao virar da semana. Até lá ainda temos muita vida para celebrar, muitas velas para festejar. E depois será tempo de regressarmos às nossas casas, até ao próximo encontro. Até ao próximo beijo. Até ao próximo abraço apertado. Coração junto aos vossos corações.

domingo, outubro 07, 2012

Voo Nocturno

"Ela ficava ali. Olhava, triste, para aquelas flores, aqueles livros,
aquela doçura, que para ele eram só um fundo de mar."

Antoine Saint-Exupéry

 

segunda-feira, outubro 01, 2012