segunda-feira, maio 31, 2010

Sinal horário

Hoje ouvi a tua voz outra vez. É estranho, é sempre estranho ouvir a tua voz quando já não estás cá. Fico quase com a sensação que tudo não passou de um sonho mau e que afinal ainda estás aqui, ao meu lado, nunca me deixaste, foi tudo apenas um sonho mau. Tento mesmo convencer-me disso, fecho os olhos e imagino que não é só a tua voz, és tu como um todo que voltou para o meu lado. Mas isto dura apenas uns instantes, cedo me apercebo que é apenas uma gravação da tua voz, um eco de ti, nada mais. E depois choro. E continuo a chorar. A tua ausência torna-se mais real de cada vez que ouço a tua voz. E ela continua a ouvir-se, todos os dias, todas as horas, muito tempo depois de nos teres deixado. Mas será que nos deixaste, realmente? E depois páro de chorar. E recordo todos os momentos que tivémos juntos. Todos os anos, meses, dias, horas, segundos que vivemos lado a lado. Todos os pequenos pormenores que tenho agora, aqui, neste momento, a toda à minha volta, pequenas coisas onde está o teu olhar, o teu sorriso, o teu ser. E no ar ouço mais uma vez a tua inconfundível voz. E sorrio. E enxugo as lágrimas. Pois sei que ainda aqui estás, ainda me rodeias com tudo aquilo que foste e sempre serás no meu coração. E volto a sorrir e volto a sair para a rua. Para o sol. Lá fora.

(esta não é a minha voz. é uma voz ficcionada para outrém. outrém que admiro.)

quinta-feira, maio 20, 2010

"Mas ando pela vida feito placa de auto-estrada, que ensina o caminho aos outros mas pouco sabe de si
Mas ando pela vida por ver andar meus amigos, e confesso que por vê-los nem me custa andar aí"




segunda-feira, maio 17, 2010

As intermitências da morte

"Então ela, a morte, levantou-se, abriu a bolsa que tinha deixado na sala e retirou a carta de cor violeta. Olhou em redor como se estivesse à procura de um lugar onde a pudesse deixar, sobre o piano, metida entre as cordas do violoncelo, ou então no próprio quarto, debaixo da almofada em que a cabeça do homem descansava. Não o fez. Saiu para a cozinha, acendeu um fósforo, um fósforo humilde, ela que poderia desfazer o papel com o olhar, reduzi-lo a uma impalpável poeira, ela que poderia pegar-lhe fogo só com o contacto dos dedos, e era um simples fósforo, o fósforo comum, o fósforo de todos os dias, que fazia arder a carta da morte, essa que só a morte podia destruir. Não ficaram cinzas. A morte voltou para a cama, abraçou-se ao homem e, sem compreender o que lhe estava a suceder, ela que nunca dormia, sentiu que o sono lhe fazia descair suavemente as pálpebras. No dia seguinte ninguém morreu."

José Saramago


quinta-feira, maio 06, 2010

Ser benfiquista

"Uma derrota do meu Benfica perfura-me o ânimo, sem cuidar da anestesia. Uma vitória do meu Benfica alimenta-me mais do que o mais calórico dos alimentos, e anima-me mais do que uma mão-cheia de antidepressivos. Na vitória, o amor ao clube é partilhado, mas no desaire a solidão dá-lhe uma expressão infinita e incondicional. Como acontece com a pessoa amada, o verdadeiro teste do afecto concretiza-se nos momentos difíceis. O Benfica é ao mesmo tempo afecto e privilégio, coração e razão, vitamina e analgésico, fermento e adocicante, saudade e desafio, cumplicidade e aconchego."


Utilizo as palavras de outrém pois acho que são a explicação possível para o que significa ser adepto de algo. Quando as emoções se misturam cá dentro a um ritmo avassalador, quando passamos no espaço de um minuto da maior das euforias ao mais profundo dos desesperos. E acho que isto é algo com que qualquer adepto se pode relacionar, independentemente da sua cor clubística. Todos somos treinadores de bancada, todos achamos que sabemos a táctica perfeita, todos pensamos que sabemos o segredo por trás da vitória, dos golos, das bandeiras e dos cachecóis a rodopiarem no ar. No fundo, não passa de um jogo, algo que também atravessa a nossa vida, mas que não passa disso mesmo, de um jogo. Que por vezes se leva a si próprio demasiado a sério, mas enfim, se fosse a feijões a paixão não existiria. Assim, e independentemente do que aconteça este próximo fim-de-semana, neste campeonato o meu clube já me deu enormes alegrias. Desde a avalanche de golos, aos passes de letra do Di Maria, dos pontapés bombásticos do Carlos Martins, às fintas do Saviola, dos pulmões enormes do Ramires, ao nervoso miudinho de cada vez que o Cardozo ia marcar uma penalidade, da força de vontade do Jorge Jesus, às vezes em que preferia que o mesmo Jesus ficasse mudo e calado. Houve de tudo este ano e agora que, sem cinismos, espero que o campeonato fique ganho, mesmo que isso não aconteça, o meu Benfica já cumpriu uma coisa em relação a mim. Devolveu-me, nem que seja só este ano, o gosto de ver futebol bem jogado. E isso, é bem melhor que um Picasso de 81,3 milhões de euros (ou não...).

sábado, maio 01, 2010