terça-feira, abril 14, 2009

Só à noite.


É exactamente ali ao fundo.
Se os meandros da vida fossem como nos sonhamos e nunca de outra forma.
E não me canso de repetir.
O sítio é ali ao fundo.

Montra

Ajusta os óculos na ponta do nariz. O pequeno rectângulo de vidro à sua frente torna-se menos desfocado. Consegue distinguir melhor as formas humanas que se movem em camâra lenta do outro lado do vidro. Pernas esguias, mamas de vários feitios e tamanhos, lábios carnudos, penteados díspares, roupas quase inexistentes, rabos firmes. Lentamente, todas aquelas mulheres se vão sentando na pequena plateia que ocupa quase toda a extensão do quarto. Não era sua intenção, mas acabou por ser o primeiro cliente a chegar nessa noite, e tinha chegado de tal forma cedo que elas ainda se estavam a acomodar nos seus lugares do costume. Tinha a sensação que esse facto lhe dava um ar algo desesperado, o que apenas aumentava os constantes remorsos que sentia de cada vez que entrava naquela casa. Mas que não impediam a excitação que sempre sentia naquele exacto momento. O momento em que tinha de escolher uma das mulheres do outro lado do vidro. Aquela que se iria disponibilizar para uma massagem com um nome exótico e, acto contínuo, para algo mais que o seu cliente necessitasse. O algo mais seria, por ele, eventualmente recusado, por muitas ofensivas que a mulher fizesse, e sabia que seriam muitas, como sempre acontecia. Afinal, era aí que residia a sua principal forma de rendimento, limpo de impostos e longe das mãos do dono do estabelecimento. Das primeiras vezes tinha cedido, os encantos de todas aquelas senhoras eram por demais irresistíveis e o seu desejo sexual queimava todos os cadernos de cheques que lhe apareciam pela frente. Mas agora, aos sessenta anos, e com todas as dores que assolavam o seu corpo, a massagem e o contacto de outro ser humano eram tudo o que ele precisava para se sentir de novo inteiro. Quase dispensava qualquer tipo de conversa, até porque a mesma andava sempre de volta do mesmo assunto, felácios e cópulas, e desde que tinham começado a aparecer nacionalidades búlgaras, ucranianas ou vietnamitas, que os monossílabos tinham imposto a sua lei, o que muito lhe agradava. Mas a realidade é que continuava a sentir tesão, naquele preciso momento, o momento da escolha. O momento em que, do outro lado do (falso) espelho, duas dezenas de Alices o aliciavam com a sensualidade dos seus corpos e o fulgor dos seus olhares. Naquele breve instante, sentia-se de novo dono e senhor do seu destino, sem ter de prestar contas a quem quer que fosse, sem ter de percorrer hotél após hotél, cidade após cidade, seminário após seminário, sem ter de esperar por uma reforma que apenas traria um placa comemorativa, uma palmadinha nas costas e quase nada para mostrar de uma vida de trabalho incessante. Era irónico que estando naquela posição, de um lado de um vidro, se sentisse novamente um homem. Fugia-lhe à compreensão, mas era aquilo que lhe fazia bater mais rápido o coração, a escolha de uma mulher com quem passaria umas horas a troco de algumas notas de euros. Tudo isto lhe passava pela mente, enquanto chamava o dono e lhe apontava a rapariga escolhida para esta noite. A lingerie vermelha que envergava tinha sido decisiva. Lembrava-lhe o logotipo da sua empresa...

domingo, abril 12, 2009

Ternura

Desvio dos teus ombros o lençol,
que é feito de ternura amarrotada,
da frescura que vem depois do sol,
quando depois do sol não vem mais nada...

Olho a roupa no chão: que tempestade!
Há restos de ternura pelo meio,
como vultos perdidos na cidade
onde uma tempestade sobreveio...

Começas a vestir-te, lentamente,
e é ternura também que vou vestindo,
para enfrentar lá fora aquela gente
que da nossa ternura anda sorrindo...

Mas ninguém sonha a pressa com que nós
a despimos assim que estamos sós!

David Mourão-Ferreira



(Foto de Luís Zeferino)

Páscoa

A Páscoa é sempre uma altura estranha. Para mim significa, mais que tudo, renovação. Começar do ponto zero e tentar fazer as coisas de uma forma melhor. É dificil, até porque, como acabei de escrever num e-mail, "mesmo que me desagrade, (...) a Páscoa está cada vez mais semelhante ao Natal, com o que de redutor isso significa. Do ponto de vista consumista, ou se preferirem do meu olhar Modelo, houve mesmo aspectos ainda mais degradantes que no Natal, o que me leva a pensar que, mesmo em tempos de crise como os que vivemos, as pessoas farão tudo por meia dúzia de mexilhões. Literalmente. É a sociedade que temos."
Eu sei, eu sei, é uma visão bastante negativa das coisas. O que nos vale é que em breve iremos ter políticos de verdade, a fazerem política de verdade, e a porem o país de novo nos eixos. Será que vamos mesmo ficar alguns meses sem democracia, como prometido?


PS - E ainda não desisti de ser eleitor em Lisboa. Sim, porque eu quero que Lisboa tenha Sentido. Com mais ou menos discotecas...

quinta-feira, abril 02, 2009

Memorial


Porque a história tende a sofrer de amnésia congénita, e porque está quase a fazer um ano e voltei hoje a rever os instântaneos possíveis, nunca é demais lembrar. Lembrar o quão preciosa é a vida, especialmente de qualquer ser vivo inocente que apenas quer vivê-la, respirá-la.

quarta-feira, abril 01, 2009

Encomendar

E hoje, por uns breves minutos, apeteceu-me levantar da minha cadeira, mandá-los todos calar e do alto da minha garganta dizer-lhes para irem fazer o mesmo que a Anita. Talvez assim as suas brilhantes ideias saíssem pelo buraco certo...


(Quem trabalha comigo, sabe que isto tem tudo a ver comigo... :)